Colecionadora de perdas

Você não tem coração. Foi o grito quase cuspido na sua cara. Ela não se importaria com isso se fosse qualquer outro dia. Mas aquele era o começo de um plantão e já teve três pacientes falecidos. E ali na sua frente, uma mãe chorando em prantos, a culpava pela morte do filho. Ela era médica de urgência há tantos anos. No início, uma morte era uma pedra bastante pesada para carregar. Mas com o tempo foi diminuindo o tamanho dessas pedras, para que ficasse mais cômodo carregá-las. Deixou seu emocional de lado e adotou seu lado mais racional. Assim, com o tempo, era uma médica que colecionava pedrinhas. Muitas vidas foram salvas. Mas isso não a fazia abandonar aquelas pedrinhas. Até ouvir aquelas palavras. Uma pontada de emoção veio com força ali onde a mulher dizia faltar um coração. E a médica fugiu para seu consultório. Deixou suas pedrinhas se transformarem em lágrimas e, como nunca antes, desabou em choro. Mas foi aí que ela pegou o estetoscópio sempre pendurado no pescoço, colocou nos ouvidos e pôs no próprio peito para ouvir seu coração. Esse simples gesto a fez retomar a racionalidade de antes: afinal, havia um coração ali. Engoliu o choro. Limpou as lágrimas. E foi colecionar outras pedras. Colecionar mais perdas.